domingo, 2 de dezembro de 2007

9º Capítulo - Parte III

Aproximei minha cadeira da poltrona em que Maurício estava sentado e perguntei.

- Quantos anos tinha a sua noiva?... quer dizer... sua ex-noiva?

- Quando nos conhecemos tinha dezessete anos. - Ficamos em silêncio por alguns instantes. Eu resolvi falar um pouco de mim. Talvez para retribuir a confiança que ele depositou.

- É... eu sei bem como é se sentir só. Eu sou uma pessoa muito solitária. Aliás, ontem, eu saí pra ver se conseguia me sentir menos deprimido por causa dessa solidão. - Lá estava eu a contar minha vida para aquele quase estranho, novamente.

- Pra onde você foi? - Achei a pergunta um tanto indiscreta, mas no fundo eu gostava daquele jogo.

- Numa boate.

- Qual?

- Boêmio. Conhece? - Era uma maneira de eu testá-lo e ver se conhecia o meio gay.

- Não. Fica aonde? - Tinha que reconhecer que se estava jogando comigo, ele era melhor nisso.

- Na Cinelândia. - Eu não tinha mesmo paciência para ficar escondendo o óbvio.

- A Cinelândia é um lugar um tanto exótico. Sabe que eu me sinto muito atraído por esses lugares?

- É mesmo. Por quê?

- Não sei. Na verdade eu tenho um lado meio marginal.

- Você acha que a Cinelândia é um lugar de marginal?

- Não. Não foi isso que eu quis dizer. Quando eu falo em lado marginal, não me refiro a assaltantes ou coisas assim; falo das pessoas que são marginalizadas por sua opção de vida. - Comecei a perceber que ele era do tipo sutil.

- Sem querer ser claro, você tá se referindo aos homossexuais?

- Também. - Ele era incisivo em suas perguntas e evasivo em suas respostas.

- O que você acha da homossexualidade?

- Eu vou te contar uma história que talvez lhe responda essa pergunta. Quando eu era pequeno, morava numa casa de vila e tinha um garoto que sempre me chamava para brincar no terraço da casa dele, que ficava na mesma vila. Um dia, quando eu tinha uns nove anos e ele uns treze, praticamente me obrigou a fazer coisas com ele que na hora não gostei muito...

- Vocês transaram?

- Foi... Depois desse dia ele começou a me ameaçar. Dizia que ia contar tudo para minha mãe, caso eu não tornasse a fazer aquilo de novo... Com o tempo tudo ficou confuso em minha mente. Eu ainda era muito pequeno... Os sentimentos se misturavam e eu passei a gostar e detestar aquela situação.  Se é que isso é possível...  - Agora ele não tinha sido nada evasivo. Instalou-se um clima de constrangimento, ao mesmo tempo em que eu estava achando tudo muito interessante.

- Aconteceu algo parecido comigo na infância... Foi com meu primo... Mas eu gostava... Sabe... Eu sou gay.

- Eu sei. Já tinha percebido.

- Desde pequeno que sou assim. Quando eu entrei na adolescência foi como se o mundo tivesse desabado na minha cabeça. Eu não entendia porque eu tinha que ser homem. Todas as minhas tendências eram femininas.

- Depois desse episódio a minha vida seguiu por um caminho heterossexual. Nunca tive vontade de ser mulher. Gosto de transar com as garotas. Estava feliz com a minha noiva. Mas tudo aquilo nunca saiu da minha cabeça.

- Você se sente atraído por outros homens?

- Não sei te responder isso... Às vezes, acho que não... outras vezes... não sei. - Aquilo era por demais excitante. Há algumas horas atrás eu achava aquele cara um chato. Agora eu o achava um homem fascinante. Como eu já havia dito ele era fisicamente feio, mas depois de tudo que me falou não conseguia ver feiúra. Só enxergava uma pessoa maravilhosamente sensível. O homem que sempre procurei.

- O que você acha de darmos uma volta por aí? Podíamos ir a um bar tomar alguma coisa? - De repente tudo perdeu o encanto. Parecia que ele era mais um daqueles caras que ficam pensando em quanto tenho dentro da carteira.

- Não tenho dinheiro. Saí de casa para vir aqui e não pretendia ir a lugar nenhum. - Respondi num tom meio seco.

- Eu to convidando, eu pago! - O encanto retornou. Ele não era um aproveitador barato.

- Aceito sim.

Ele me levou até onde estava sua mãe e pediu que ela me servisse um café. Enquanto isso ele foi tomar banho e se arrumar.

- Maurício esqueceu de me dizer seu nome. – Falei para mãe dele.

- É Virgínia. Você mora aqui perto?

- Moro. Na São Roberto.

- Acabei de fazer um bolo de milho. Gosta? - Dona Virgínia era uma mulher simples e muito hospitaleira. Tinha adorado o jeito dela, totalmente diferente do seu marido.

- Gosto.

Comi o bolo acompanhado de uma xícara de café. A casa já não me parecia tão feia, nem tão velha, nem tão desarrumada. Agora tudo tinha um aspecto íntimo e acolhedor. Até a minha ressaca já tinha desaparecido.

Maurício aparece na porta da sala, trajando uma calça social preta, sapatos de couro e camisa pólo com um blazer esportivo. Senti-me totalmente desarrumado, pois costumava andar de calça jeans, tênis e camisa de malha. Ele realmente era um homem surpreendente. Jamais pensei que usasse roupas de tão boa qualidade.

- Aonde você vai assim?! A um casamento?! - Perguntei.

- Tava afim de me arrumar.

- Olha como eu to vestido!

- Não esquenta. Vamos?

Despedi-me de Dona Virgínia, cujo olhar de bondade ficou gravado em minha memória e saímos. Bob ficou latindo na janela.

Maurício, como eu, não tinha carro e não sabia dirigir, por isso fomos andando até a um ponto de ônibus. Chegando lá ficamos indeciso sobre a escolha do bar.

- Você tem alguma preferência? - Perguntei.

- Não. Acho que o que faz o lugar é a companhia.

- Isso é um elogio?

- Por quê não? - Ele era gentil e cavalheiro. Eu gostava disso. Qual a "mulher" que não gosta?

- Tem um lugar onde conheci uma pessoa importante na minha vida. Não sei porque, gostaria de ir até lá.

- Qual é o lugar? - Pensei que fosse perguntar quem era a pessoa.

- Um barzinho chamado Nobody´s.

- Fica aqui perto?

- Fica.

- Então vamos lá.

Chegamos ao Nobody´s. Velhas recordações de Fernando vieram a minha mente. Além daquele lugar me lembrar também de Adriana, boa amiga.

- Vamos sentar naquela mesa? - Maurício apontou para uma mesa na parte interna do bar.

- Vamos sim. - Fui, mas antes olhei para a mesa em que tinha conhecido Fernando. Estava ocupada por uma casal e duas crianças.

Sentamos e chamamos o garçom para trazer o cardápio.

- O que você vai beber? - Perguntou, Maurício.

- Essa é uma pergunta difícil de responder por uma pessoa que está de ressaca. - Brinquei.

- Eu não costumo beber álcool.

- Nem eu. Só costumo beber cachaça, vodka, uísque. Álcool nunca.Brinquei

- To falando sério!

- Tá legal. Que tal um chope?

- Que tal uma coisa mais leve como um refrigerante?

- Não acredito que você esteja falando sério. Você não bebe álcool mesmo?!

- Não. Por quê o espanto?

- Desculpe, Maurício. É que os homens com quem saio costumam encher a cara.

- Eu não sou igual a eles. - Falou sério.

- Eu já percebi. - Fiquei sem graça.

- Ok! Você venceu. Garçom dois chopes! - Gritou em direção ao garçom.

- Me desculpa. Eu estava só brincando. Não precisa beber por minha causa.

- Me desculpa você. Acho que estou sendo muito radical. Afinal, um chopinho não vai me embebedar. - Ficou um clima de constrangimento entre nós.

- Eu queria te contar uma história...

- Conta.

- Eu já tive muitos problemas com o álcool. Durante muito tempo da minha vida eu achei que a solução pra os meus problemas, pra minha timidez, era me entorpecer. Nessas minhas viagens identifiquei algo como uma personalidade que acho que surge quando estou sobre o efeito do álcool. Dei até um nome pra ela...

- Qual?

- Um dia eu vou te apresentar. Aí você vai saber... .

- Me conta um pouco sobre os caras com quem você sai? - Achei a situação bizarra, eu ali com um cara que eu não sabia se queria ser meu namorado, meu amigo, ou meu inimigo, contando toda a minha vida.

O garçom chegou com o chope.

- Bem... O que eu posso falar?... Os caras com quem saio, são caras da noite. São pessoas de quem não se espera nada.

- Você não tem amigos?

- Tenho amigas. Os homens héteros têm medo de mim.

- Você não tem amigos como você?... Quer dizer... gays.

- Engraçado. Por muito tempo eu me cobrei o fato de eu não ter amizade com outros homossexuais, mas com o tempo surgiram algumas explicações em minha mente. Acho que não me adapto muito a forma de vida dos gays em geral, pode parecer preconceito, pode parecer contraditório em relação à vida promíscua que levo, mas não é. Eu já tentei me aproximar do meio gay. Mas nunca consegui incorporar os trejeitos exagerados, as gírias e acabo sendo discriminado por eles mesmo. Na verdade eles parecem gostar de tudo que envolve o meio e a vida de um homossexual. Eu sou uma pessoa tímida tenho meu estilo próprio e pago um preço por isso...

- Qual é o preço?

- A solidão.

- Mas você me disse que tem amigas?

- Tenho. Eu me dou muito bem com as mulheres. Elas falam a minha língua. Com elas me sinto em casa. Na verdade, a explicação que encontrei para não ter amigos gays é que eu não me sinto um homossexual e sim como se fosse uma mulher. Não sei se dá pra você entender... - Eu me sentia cada vez mais próximo de Maurício. Ele parecia se interessar pelo que eu sentia.

- Faço uma idéia... Você é uma pessoa rara. - Encarei aquela observação como um elogio.

- E você? Teve muitas namoradas?

- Não. Acho mesmo que Fátima foi a minha única namorada de verdade.

- Quantos anos você tem?

- Trinta.

- Isso também é raro... - Acho que ele não encarou aquilo como um elogio.

- Já tive algumas garotas na minha vida, mas nada de importante, nada que realmente me marcasse. Fátima foi a única.

- Você ainda gosta dela, não é?

- Mais ou menos. Agora já tá em processo de esquecimento.

- Engraçado. Parece que temos algumas coisas em comum. Eu também estou em processo de esquecimento de um cara.

- É mesmo?! Você não me disse que tinha um namorado.

- Eu não tinha. Foi uma ilusão.

- Como assim?

- Eu me apaixonei por ele, mas ele nunca sentiu nada por mim.

- Ele é gay... quer dizer... bem... Ele se sentia atraído por pessoas como você?

- Não. Isso foi o ponto principal do meu fracasso. Acho que se eu fosse uma mulher tudo teria sido diferente...

- Problema dele! Ele é que saiu perdendo! - Brincou

- Acho que esse é o segundo elogio da noite. To enganado? - Eu precisava saber aonde ele queria chegar com tudo aquilo. Amizade? Romance? Proveito? O quê?

- É verdade. Eu te acho uma pessoa interessante. - Ele já tinha acabado a tulipa de chope e já mostrava sinais de que o álcool estava deixando-o mais solto.

- Interessante em que sentido?

- Interessante, ué! - O álcool não teve o efeito total que eu esperava.

- O show vai começar!

Um grupo musical se apresentava no Nobody's nos finais de semana. Senti-me como Jade, mas não era o meu lado Jade que estava ali. Era como se Jeremias estivesse vivendo as coisas que Jade vivia. Eu não me sentia bêbado. A ressaca tinha passado, mas eu estava sóbrio e do lado de um cara que eu não sabia o que queria de mim. Aquela experiência era fascinante. Eu passei a minha vida saindo com homens de todos os tipos e agora me sentia como se fosse a primeira vez. Sentia-me muito bem. Eu olhava para aquele homem que de início achei chato e feio e agora sentia um imenso bem estar ao seu lado. Algo inexplicável. Como se já o conhecesse há muito tempo. Não me sentia só ao seu lado. Sentia-me compreendido. Por quê não dizer? Amado. Fiquei com medo de estar fantasiando mais uma vez a situação. Perguntei-me que estranho sentimento era aquele que me invadia...

Os músicos deram um intervalo no show e pudemos voltar a conversar, já que a única coisa que estávamos fazendo era cantar e beber.

- A noite tá ótima. Não é?

- Acho que você bebeu um bocado, pra quem nunca bebe.

- Tou me sentindo leve. Só isso. - Ele não parecia bêbado.

- Eu queria te fazer uma proposta...

- Qual?

- A noite tá tão legal. Que tal a gente combinar de sair mais vezes pra conversar? Acho que a experiência foi boa. - Naquele momento eu iniciava o nosso romance, sem mesmo ter a idéia do que estava fazendo.

- Acho a idéia ótima. Aceito. - Seus olhos brilharam. Senti que realmente ele estava interessado em mim. Finalmente eu tinha uma pessoa sensível, diferente e que parecia gostar de mim como eu esperava. Não parecia ser uma fantasia. Senti um frio no estômago. Não entendia bem o que estava acontecendo. Só sabia que era muito bom.

Passava da meia-noite quando resolvemos voltar para casa. Maurício estava meio tonto por causa do chope. Eu estava sóbrio mais totalmente feliz por estar ali, por estar ao lado dele. Estávamos nos sentindo tão bem juntos que resolvemos ir andando até em casa.

- E aí? Gostou da noite? - Maurício perguntou.

- Adorei. Há muito tempo não me sentia tão bem. - Olhei dentro do seu olho. Ele sorriu.

- Eu também. Depois que terminei com Fátima nunca mais tinha saído. Vou te confessar uma coisa. Eu nunca fui muito de sair, a maior parte da minha vida foi dentro de casa, lendo. Sempre gostei muito de ler. A leitura me leva a lugares que sempre sonhei e faz com que me sinta como a pessoa que gostaria de ser. - Cada vez mais eu via beleza naquele homem. Não a beleza efêmera de um rosto bonito, mas sim, a beleza dos sentimentos raros como: sensibilidade, gentileza, inteligência.

- Como você gostaria de ser?

- Eu gostaria de ser um homem bonito. Eu sempre me achei feio e sei que sou feio. Isso é uma coisa que a sociedade não perdoa.

- Sempre achei que isso fosse uma preocupação das mulheres. Nunca pensei que um homem pudesse se sentir tão mal por não ser bonito. Geralmente a sociedade não é tão rigorosa com os homens nesse aspecto.

- Viu como você acabou de confirmar o que eu falei?

- Não entendi.

- Você me acha feio.

- Olha, Maurício, eu não vou negar que de princípio te achei feio. Mas foi só a primeira impressão. Agora que te conheço um pouco, te acho uma pessoa interessante, isso bloqueou essa primeira percepção.

- Eu preferia um exterior lindo.

- Acho que o álcool te deprimiu um pouco.

- É verdade. Vamos mudar de assunto. Posso te telefonar essa semana?

- Claro que sim. Você tem o telefone do meu trabalho?

- Não. Só o da sua casa, que eu nem conheço.

- Na hora certa você vai conhecer. Tem um papel aí?

- Você acha que eu vou andar sem papel e caneta? E se pintar uma gata querendo meu telefone?

- Engraçadinho! - Não gostei muito daquela brincadeira.

Anotei o telefone do meu trabalho e passei para ele. Chegamos a um ponto do caminho em que precisávamos nos separar pois ele entraria em uma rua e eu seguiria outra.

- Adorei a noite. Foi muito bom te conhecer. - Ao falar isso, Maurício, estendeu a mão. Seus olhos brilhavam e transpareciam desejo. Eu estendi a mão.

- Gostei muito também. Não deixa de me ligar, hein? - Apertei a mão dele e coloquei a minha outra mão por cima. Senti-me absolutamente envolvido. Tive vontade de beijá-lo.

- Não vou deixar de te ligar. - Falou sério e nossas mão juntas se apertaram, sabendo que aquele não era o local apropriado... O clima estava tão cheio de desejo que um grupo de rapazes que estava a alguns metros dali pararam de conversar e nos observavam.

Nos despedimos. Ao passar pelo grupo de rapazes, ouvi alguns cochichos e risadas. Não me importei com aquilo. Aliás, nada poderia me atingir naquela noite. Fui andando pelas ruas como se não sentisse o chão. Com Fernando não era assim, eu ficava sempre sem saber o que realmente estava acontecendo. Apesar de Maurício não ter falado que estava interessado em mim, o comportamento dele dizia tudo. Parecia um sonho, mas não era. Finalmente eu encontrara o homem sensível que sempre procurara.

Custei a dormir, pois não pensava em outra coisa que não fosse ele...

Um comentário:

Anônimo disse...

que capítulo bom, leve! Já estou quase terminando de ler pela segunda vez!