domingo, 30 de dezembro de 2007

12º Capítulo - Parte I

Depois dos fatos ocorridos durante o carnaval, meu relacionamento com Maurício se modificou. Planejávamos morar juntos. Nossos ideais eram parecidos. O sexo entre nós era ótimo. Mas, pouco a pouco, uma característica em comum entre meu lado Jade e Maurício tomou uma proporção enorme: a promiscuidade. Quando estávamos juntos, era como se um estimulasse inconscientemente esse comportamento no outro.

Íamos para as boates ou para os bares e quando víamos alguém que nos interessava, bastava um olhar entre nós e tudo estava dito. Aproximávamos-nos do homem desejado e sondávamos para ver o que ele acharia de uma relação a três. Alguns se assustavam e se afastavam, mas outros, como nós, adoravam a idéia...

Assim foi nossa vida durante sete meses de relacionamento. Durante a semana nos dedicávamos totalmente um ao outro. No final de semana procurávamos aventuras, mas tudo era feito juntos. Onde estava um o outro estava; fosse na farra, fosse no dia a dia. Afastei-me de Adriana e de Luciana. Às vezes, encontrava Fernando na porta do elevador, mas paramos de conversar no bar do Pêpe. Respirava a presença de Maurício e vice-versa. Ao nosso jeito, era um relacionamento perfeito.

A aparência de Maurício modificou-se totalmente. Os cabelos cresceram até os ombros. As roupas eram despojadas, parecia um hippie fora de época. Era como se quisesse matar a imagem do antigo Maurício.

Da minha parte, também houve uma mudança. Eu tinha uma aparência levemente efeminada. Maurício começou a buscar o homem que existia dentro de mim. Na verdade, era esse lado que o atraía.  Passei a usar roupas bem masculinas e a cortar o cabelo bem curto. Depois que terminei o curso de programação entrei em uma academia de ginástica, onde fiz muita musculação e desenvolvi um pouco minha massa muscular. E quanto mais me tornava masculino, mais Maurício se sentia atraído por mim. Ele nunca me pediu nada disso, mas como sentia que isso o agradava, cada vez mais eu cultivava esse meu lado masculino. Fazia tudo por Maurício, mas quando me olhava no espelho não gostava da minha imagem. Contudo, se aquilo prendia a pessoa que amava, valia à pena...

Acabei o curso e comecei a procurar emprego como programador, mas percebi que não seria fácil. Como aconteceu com meu primeiro emprego, ninguém queria me dar uma chance, já que não possuía experiência.

Reabri minha matrícula na faculdade, na esperança que o fato de realizar o sonho de meu pai, me reaproximaria dele. Embora não falasse, era muito importante para mim esse reencontro.

A insatisfação no trabalho aliada a dificuldade de encontrar um emprego na área de programação e dificuldades na faculdade começaram a afetar meu sistema nervoso. Passei a ter uma insônia rebelde e durante o dia ficava ansioso e desatento. Resolvi procurar um médico que me receitou tranqüilizantes. Tomava um pela manhã e outro a noite. Aquilo me aliviou um pouco. Teria até resolvido meu problema, provisoriamente, caso eu não suspendesse a medicação nos finais de semana para me embriagar.

Maurício, apreensivo com meu estado de tensão, tentava me ajudar distribuindo meu currículo em todos os lugares em que tinha oportunidade. No entanto, quando o sábado chegava, também esquecia tudo e se entregava à bebida e à promiscuidade. Talvez se um dos dois tivesse se mantido lúcido, muitos fatos teriam sido evitados.

Num sábado no início do mês de setembro. Eu e Maurício havíamos nos embebedado em meu apartamento e decidimos ir até o Boêmio, pois era um lugar ótimo para encontrar alguém que aceitasse nosso "jogo". Como esperávamos, encontramos um rapaz perfeito. Seu nome era Nestor. Eu e Maurício chegamos à conclusão que ele merecia um lugar especial. Levamos Nestor para meu apartamento. Foi uma verdadeira festa. Nestor transava comigo enquanto Maurício sentado em uma poltrona se masturbava, libertando seu lado "voyeur". Depois a situação se invertia de todas as formas. Até que exaustos e bêbados adormecemos em minha cama.

Interessante observar que nem eu nem Maurício nos importávamos com a AIDS. Acho que além da promiscuidade, o perigo da morte também nos atraía. Era um "jogo autodestrutivo". Algo muito parecido com a época em que Jade me dominava, embora eu sentisse que era meu lado Jeremias que fazia tudo aquilo. Durante todo o meu relacionamento com Maurício a impressão que tive foi de que Jeremias e Jade estavam sempre simultaneamente presentes, um tentando vencer o outro. E Maurício também tinha seu lado Jade...

No dia seguinte, por volta das onze da manhã, fui acordado com a campainha. Vesti um short e corri até a porta. Quando abri, vi meu pai e minha mãe, em pé, diante de mim. Senti minhas pernas bambearem. Imediatamente lembrei-me de Maurício e Nestor no quarto. Não sabia o que fazer, dizer, ou pensar.

- Pai! Mãe! Que surpresa!

- Não vai convidar seu pai e eu para entrarmos?

- Claro! Entra! - Maurício aparece na sala.  Com poucas roupas.

- Quem tá aí, Jeremias? - Perguntou, ignorando a presença de meus pais.

- Esse é um amigo meu... Maurício... - Pensei que fosse desmaiar. Meu pai olhou para Maurício com ódio. Nesse mesmo instante, todos ouviram a porta do banheiro se fechar.

- Eu disse pra você, Madalena, que eu não devia vir aqui sem avisar! Vamos embora! - Pegou o braço da minha mãe e puxou. Maurício permaneceu calado, sem saber o que dizer.

- Calma aí, pai, são só uns amigos e já tão de saída!

- Vamos Madalena! - Meu pai continuou puxando minha mãe, cuja expressão era de decepção. Ao passarem pelo corredor em direção a porta da sala, viram Nestor sair do banheiro só de cueca. Era o que bastava...

Saíram sem se despedir, sem falar uma única palavra. Sentei na poltrona e fiquei olhando para o chão. Maurício não sabia o que fazer. Lágrimas rolaram pelo meu rosto. Nestor entra na sala e não entende o que está acontecendo. Maurício o leva para o quarto, enquanto fiquei ali, chorando por muito tempo. Tudo o que mais queria era ser perdoado pelo meu pai... Eu havia estragado tudo... Agora não haveria volta... Ele não me daria outra chance...

Depois de algum tempo ouvi a porta da cozinha bater. Era Nestor que havia ido embora. Maurício entra na sala.

- Como é que você tá, amor?

- Nestor foi embora?

- Foi. Eu expliquei o que tava acontecendo... E você Jê, como é que tá?

- Como é que você acha que eu to? Estraguei a primeira e única oportunidade que eu tive? E agora, Maurício? - Chorei abraçado a ele.

- Calma, Jê... Olha, assim como ele te deu essa oportunidade vai te dar outra... Você vai ver.

- Acho que não, Maurício... Acho que não... - E chorei por muito tempo.

Maurício me levou para o quarto e fez com que me deitasse, enquanto foi preparar algo para comermos.

A minha vontade era de morrer, de sumir. Pela primeira vez, depois de ter conhecido Maurício, voltei a ter idéias suicidas. Minha angústia era enorme... Senti-me abandonado, vazio, horrível... Lembrei-me dos tranqüilizantes... Talvez eles aliviassem aqueles sentimentos angustiantes... Tomei três de uma só vez...

Quando Maurício voltou, trazia uma bandeja com café, pão e queijo. Sob o efeito dos comprimidos senti-me bem relaxado e mais forte. A situação já não me parecia tão horrível...

Não quis comer nada. Maurício levou a bandeja de volta para a cozinha e eu fiquei prostrado na cama. Acabei adormecendo...

Horas depois acordei atordoado e percebi que Maurício estava ao meu lado me observando enquanto eu dormia.

- Oi, Maurício... Tua família deve tá preocupada.

- Eu não podia ir embora e te deixar aqui, sem saber se você ia ficar bem, sozinho.

- Vou sim... Eu sou forte... - Não acreditava em nada do que afirmei.

- Eu vou... Mas mais tarde eu vou voltar aqui... Combinado?

- Combinado. - Deu um beijo em meus lábios, levantou-se e vestiu suas roupas.

- Não vai beber, não é? - Ele me conhecia o suficiente.

- Não. Vou ficar aqui deitado e vou ver um pouco de televisão.

- Eu volto, tá?

- Tudo bem. Não fica preocupado.

Maurício foi embora receoso e com toda a razão. Ele sentiu que não estava nada bem.

Assim que ouvi a porta bater, peguei a cartela de tranqüilizante e tomei mais dois comprimidos. Após alguns minutos senti minha cabeça leve, no entanto continuava sentindo um "buraco no peito". Era a minha velha inimiga... A sensação de vazio...

Levantei-me trôpego e fui até a cozinha ver se encontrava alguma garrafa de bebida. Precisava anestesiar meus sentidos... Talvez morrer... Não queria lembrar de minha família... de mim... de ninguém... Achei meia garrafa de vinho embaixo da pia. Enchi um copo e bebi de uma só vez.

O efeito dos tranqüilizantes aliado ao do álcool fez com que esquecesse todas as minhas angustias. A sensação de vazio desapareceu. Fiquei calmo e relaxado. Deite-me na cama e liguei o rádio bem alto. Uma “felicidade doente” me invadiu... Nada poderia me afetar... De ninguém eu lembrava... Nem de Maurício...

Por volta das vinte horas, Maurício toca a campainha. Por acaso estava na cozinha procurando mais bebida, caso contrário, não teria ouvido, pois o rádio continuava alto.

Abri a porta.

- Oi, amor! - Pendurei-me no pescoço de Maurício.

- Você bebeu, Jeremias?! - Senti seu tom de reprovação, só pelo fato de me chamar de Jeremias.

- Um pouco... Só pra relaxar.

- Você tinha me prometido que não ia beber! Não gosto de te ver assim!

- Não esquenta! Entra aí e bebe comigo!

- Não quero beber!

- Eu estrago a única oportunidade que meu pai me deu e você quer que eu tenha uma reação madura, Maurício!!! Faça-me o favor!!! Se você quiser ficar assim você fica, se não quiser pode ir embora! Não vai fazer a menor diferença! - Eu estava absolutamente descontrolado.

Ao ouvir os absurdos que falei, Maurício virou as costas e foi embora sem dizer uma palavra. Eu empurrei a porta com toda a força e fui para meu quarto. Depois de alguns minutos, percebi a besteira que tinha feito e resolvi tomar mais um tranqüilizante. Dessa vez escolhi a cartela dos comprimidos que deveria tomar à noite, para dormir. Desliguei o rádio e liguei a televisão. Adormeci imediatamente...

No dia seguinte acordei atordoado, ainda sob os efeitos de tudo que havia ingerido na noite anterior. Percebi que a televisão tinha ficado a noite toda ligada. Olhei o relógio, eram onze horas da manhã. Dei um pulo da cama, pois tinha que estar meio-dia no trabalho.

Tomei um banho frio para ver se me animava, mas continuei me sentindo péssimo. Não tinha energia para nada. Sentia-me mais infeliz que na hora em que meu pai viu Maurício na minha sala. Era o emprego de programador que não aparecia. Era a falta de dinheiro. Era a distância da minha família. Era o curso de Administração que não conseguia levar adiante. Era o fato de não saber ser homem. Tudo estava me fazendo entrar em um estado perto do desespero. Peguei a cartela de tranqüilizantes e tomei dois.

Arrumei-me bem para ver se disfarçava minhas olheiras. Comi um pedaço de pão, bebi um copo de café e sentei-me na sala. Os comprimidos começaram a agir e fizeram minha ansiedade desaparecer.

Fui para o trabalho, quase em estado de torpor. Não consegui digitar quase nada, naquele dia. Dona Joaquina percebeu que eu não estava bem e chamou-me em sua mesa.

- Você tá se sentindo mal, Jeremias?

- To me sentindo esgotado. Acho que é estresse... Tenho estudado muito. - Ela olhou em meus olhos. Senti que a minha explicação não a tinha convencido.

- Acho melhor você procurar um médico.

- É... Vou fazer isso.

Não fui à faculdade. Voltei direto para casa, mas antes passei no supermercado e comprei algumas latas de cerveja. Queria voltar a me sentir como na noite anterior. Não importava que preço eu tivesse que pagar por aquilo.

Ao entrar em meu apartamento, fui direto para o quarto e peguei um comprimido de tranqüilizante da cartela de Urbanil, que tomava durante o dia e dois compridos de Dormonid, que tomava à noite. Abri uma lata de cerveja e tomei os três.

Lembro que em questão de minutos estava me sentindo leve e "feliz" como desejava. Liguei o rádio baixinho e não lembro mais o que aconteceu...

No dia seguinte acordei no corredor do apartamento. Deveria ter "apagado" sem sentir. Havia latas de cerveja espalhadas por todos os cômodos.

Estava deprimido. Senti a falta de Maurício, que deveria estar muito aborrecido, pois não havia me procurado.

Levantei e fui ver que horas eram. Assustei-me... Eram quatorze horas. Havia perdido a hora. Mas, também, não tinha condições de ir ao trabalho. Resolvi tomar um banho e pensar em alguma desculpa.

Ao sair do banho, procurei a cartela de Urbanil, só haviam cinco comprimidos. Olhei a de Dormonid, só tinham seis. Esqueci o trabalho, Maurício e tudo mais... Precisava conseguir mais comprimidos... Não queria ficar sóbrio... Sentia-me terrivelmente mal...

Liguei para o consultório do médico que havia me receitado os tranqüilizantes e marquei uma consulta para a quinta-feira. Ao colocar o telefone no gancho, ele toca.

- Alô.

- Melhorou?

- Oi, Maurício...

- Melhorou?

- Mais ou menos... Eu queria te pedir desculpas por domingo. Eu tava descontrolado, por causa de tudo o que aconteceu.

- Andou bebendo de novo?

- Não... Só to deprimido.

- Tá atrasado pro trabalho.

- Eu sei... Depois eu dou uma desculpa qualquer.

- Essa semana eu to dando aula o dia inteiro e de noite, também. Talvez só dê pra a gente se ver no final de semana.

- Me liga sempre que der.

- Sua voz tá tão estranha, Jê. - A raiva tinha passado, pois voltou a me chamar de Jê.

- É depressão... Eu vou melhorar.

- Olha... Eu te amo.

- Eu também.

No dia seguinte, disse para Dona Joaquina que havia passado mal a noite toda e que não consegui acordar para trabalhar. Ela demonstrou não acreditar em nada do que falei.

Como haviam poucos comprimidos e eu precisava me manter lúcido para trabalhar resolvi tomar um comprimido de Urbanil de manhã e à noite tomaria um de Urbanil e um de Dormonid.

Passei a semana tentando controlar os comprimidos apesar do Dr. Dionísio ter renovado meu estoque.

Não fui à Faculdade nenhum dia daquela semana. Depois do terceiro dia em que faltei à aula, Luciana me ligou para saber o que estava acontecendo. Disse que estava de licença médica por esgotamento físico. Ela já estava com oito meses de gravidez e logo entraria de licença.

Abandonei a academia. Não conseguiria acordar cedo para fazer musculação.

De manhã, tentava não perder a hora para o trabalho. À noite, tomava os comprimidos com qualquer tipo de bebida alcoólica: cerveja, vinho, batida. Só não conseguia mais beber cachaça e vodka, pois meu estômago não aceitava mais.

Meu rendimento no trabalho caiu muito. Tinha certeza que aquilo me prejudicaria, pois Dona Joaquina não deixaria de registrar tudo na tal planilha de aproveitamento. Mas eu não me importava com mais nada...

Maurício me ligava todos os dias e eu tentava ser o mais natural possível para que não percebesse nada.

Sem perceber, estava afundando num vício que me prejudicaria terrivelmente...


NOTA DO AUTOR: Espero que todos tenham tido um Natal com muita paz e harmonia. Que o ano de 2008 seja repleto de boas realizações.

Nas próximas semanas serão postados os últimos capítulos  do livro. Continuem acompanhando!

Os medicamentos mencionados no capítulo, não foram os que utilizei, não misturei vários tranquilizantes, mas apenas um tipo de barbitúrico. Comecei com pequenas doses, do jeito que descrevi e fui aumentando e misturando com álcool.

Alerto que essas substâncias, tantos as que citei, bem como a que usei realmente, podem levar ao coma e morte se misturadas com o álcool. Eu tive sorte de ter um organismo que suportou essa  combinação mortal.

É besteira achar que medicações psicotrópicas, só porque são vendidas na farmácia causam menos mal que as vendidas pelos traficantes. Se usadas em excesso, desenvolvem dependência e tolerância, exatamente como a cocaína, heroína e outras ilícitas. Destroem sua vida de uma forma devastadora, em pouco tempo.

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