domingo, 11 de novembro de 2007

8º Capítulo

NOTA DO AUTOR: Excepcionalmente, para dar maior fluidez a leitura, resolvi publicar este capítulo na íntegra, sem dividi-lo, como venho fazendo.


 Um mês depois do meu afastamento de Fernando, minha alegria tinha retornado. Não sabia dizer se era porque a minha paixão por ele tinha chegado ao fim, ou se era mais um daqueles períodos em que fico eufórico sem saber o motivo. Pensei, pensei e acabei concluindo que o que me dominava naquele momento era uma sensação de libertação. Fiquei espantado comigo mesmo em perceber como pude me "desapaixonar" tão rapidamente. Estava feliz, pois finalmente aquele caso de amor platônico havia terminado.

Por um acaso do destino, apesar de eu ter me transferido para o turno da noite na Faculdade e ter perdido o contato com Fernando, a minha vida ainda tinha que se cruzar com a dele. Arrumei um emprego em uma firma de informática no centro da cidade e para a minha surpresa Fernando trabalhava no mesmo prédio.

- Oi, Fernando! Que que você tá fazendo aqui?! - Perguntei ao encontrá-lo na porta do elevador do prédio onde passamos a trabalhar juntos.

- Oi, Jeremias! Eu é que pergunto o que você tá fazendo aqui?

- Eu arranjei um emprego de operador numa firma de informática, aqui no quarto andar.

- É a Infortime?!

- É! Como é que você sabe?

- Eu trabalho aqui há seis meses. Eu já tinha te falado. Numa administradora de imóveis chamada Bianco Administradora. Fica no sexto andar. Faço meio expediente...

- Eu não sabia que era aqui. Pelo jeito você vai ter que me agüentar de novo! - Brinquei.

- Que nada! Vamos tomar um café ali no bar. - Fomos até um boteco chamado Pêpe, na calçada do prédio.

- Foi bom te encontrar Fernando. Eu tava precisando dizer pra você que naquele dia em que eu te disse que tinha transformado o que eu sentia por você em amizade, eu não tava sendo totalmente sincero, por isso me afastei de você e pedi transferência para o turno da noite. Mas agora, depois desse tempo que ficamos sem se ver, noto que realmente consegui superar tudo aquilo ... To até me sentindo mais leve... legal mesmo... Sério! - Sempre achei que o amor que sentia por Fernando me diminuía em relação a ele. É como se eu ficasse em desvantagem.

- Mais uma vez te digo que fico feliz por saber disso. Pode contar comigo. Mudando de assunto, você tem escrito alguma coisa? - Esse era o velho Fernando, sempre evasivo.

- Bastante. - Meu amor por Fernando fez brotar um lado poeta que desconhecia em mim. Nas minhas horas mais difíceis, quando não podia desabafar com ninguém, pegava um papel e uma caneta e escrevia poemas. Nunca tinha escrito poemas, sempre escrevia textos realistas. Adriana leu e disse que tinham valor e me incentivou a continuar.

- Tem escrito o que?

- Poemas.

- Você nem pra me mostrar, sabendo que eu me amarro em ler, e escrever também!

- Eu ia te mostrar, só tava esperando uma oportunidade. Afinal de contas foi você quem me incentivou a voltar a escrever. Algumas pessoas leram e gostaram. - Talvez o que me impulsionasse a escrever era achar que a única coisa que Fernando valorizava em mim era esse meu lado escritor.

- Traz pra mim amanhã! Tá legal?!

Durante nossa conversa senti aquela imensa atração... Ele não devia ter feito a barba e ela estava meio crescida... Aliada àquela boca maravilhosa... Estava delicioso... Minha vontade foi roubar um beijo, mesmo que as conseqüências fossem desastrosas...

Evidentemente pensei que todas essas fantasias fossem somente atração física e não tinham nada a haver com amor, paixão, ou qualquer coisa assim. Na minha cabeça havia superado tudo.

A noite chegou e com ela mais uma aula na faculdade. A minha mudança para o turno da noite foi gratificante. Não porque eu tenha passado a gostar mais do curso de Administração, continuava a odiá-lo. Mas é que conheci uma garota muita bacana chamada Luciana. Ela era bem diferente de Adriana, talvez o único ponto em comum entre as duas fosse a lealdade dentro de uma amizade. Luciana era uma pessoa madura, segura, com um ar às vezes triste, mas de uma sensibilidade e inteligência notáveis. Ela foi talvez a única pessoa que conheci, que conseguia enxergar realmente a “mulher” que existia em mim. Percebia e aceitava normalmente. Com ela consegui me abrir e contar tudo o que tinha acontecido entre mim e Fernando.

- Oi, Jeremias! Tudo bem? -

- Tudo bem! Tenho uma novidade pra te contar sobre Fernando.

- O que foi?

- Sabia que agora a gente trabalha junto, no mesmo prédio?

- Não vai me dizer que vocês tão trabalhando na mesma firma?

- Não! Só no mesmo prédio.

- E aí?

- Ah! Nós conversamos, falei como eu estava e contei sobre os poemas.

- E ele?

- Ficou doido pra ler. Pediu pra eu levar pra ele amanhã.

- To enganada ou tem um brilho diferente no teu olho?

- Não! É impressão tua! Agora é só amizade.

- Tudo bem...

No dia seguinte, fiquei pensando na observação de Luciana. Será que ela teria razão? Será que eu continuava apaixonado por Fernando? Será que todo meu bem estar era ilusório? Pensei, mas não cheguei a conclusão nenhuma. Peguei os poemas e coloquei dentro da minha mochila.

Ao chegar ao trabalho, subi mais dois andares e fui ver se encontrava Fernando.

- Oi, Fernando! Vim trazer os poemas. - Disse ao entrar na sala onde ele trabalhava junto com uma senhora.

- Falou meu camarada! Depois a gente se fala. Tá legal? - Estava estranho, frio. Tratava-me como se eu fosse um conhecido qualquer, sem nenhum vínculo de amizade. Mas não me importei muito. Pensei que poderia ser algum problema particular.

Dois dias depois encontro Fernando na porta do elevador.

- Oi, Jeremias! Vamos até ali no Pêpe. Quero falar contigo. - Fomos até o bar da calçada.

- Leu os poemas? - Perguntei a Fernando

- Li e me amarrei! Cara, você escreve muito bem!

- Você acha mesmo?

- Acho! Sério! Eu sempre fui muito desconfiado... Você sabe disso... No início eu fiquei muito na minha com relação a você. Mas depois desse afastamento entre a gente eu percebi que te considero um amigo mesmo, de verdade. Lendo os poemas percebi que você é uma pessoa incrível. Você é um cara especial. - Depois de ouvir isso de Fernando, fiquei atordoado, sem saber o que fazer nem dizer. Eu lutei tanto para que ele gostasse de mim e agora estava oferecendo sua amizade de bandeja. Foi uma surpresa enorme.

- Você é que é um cara especial, Fernando. Bem... agora eu posso te dizer que foi você quem me incentivou a voltar a escrever e por sua causa, pelo que sentia por você foi que tive a idéia de escrever poesias. Foi mais um desabafo e acabei descobrindo algo que nem imaginava.

- Me sinto orgulhoso por saber que fui eu o motivo da descoberta.

Naquele dia nada podia me aborrecer. Já andava me sentindo muito bem sem que houvesse um motivo, somado a declaração de Fernando eu parecia que ia explodir de felicidade.

Era inédito, mas fui à aula com prazer. Se eu tivesse que ir a uma missa de sétimo dia iria feliz. Além do mais, eu estava doido para contar a novidade para Luciana.

- Luciana se eu te contar um negócio você nem vai acreditar!

- Sobre Fernando.

- Como é que você sabe?!

- Basta olhar pra você...

- Luciana, ele me disse que me considera um grande amigo. Me disse que sou uma pessoa especial!

- Conta essa história direito.

- Bem... ele disse que tinha lido meus poemas e que tinha se amarrado, aí ele disse que depois desse tempo que a gente ficou separado ele percebeu que me considerava um grande amigo e que me achava uma pessoa especial.

- Olha Jeremias, acho que ele mudou de opinião.

- Como assim?

- Para ele ter dito que você é uma pessoa especial, é sinal de que ele gosta mesmo de você...

- Você quer dizer, apaixonado?

- É. Se não ele não ia dizer isso pra você.

- Será?

- Eu acho.

- Não, Luciana, ele só quis dizer que sou uma pessoa diferente, de valor.

- Não sei, não.

- Será? - Naquele instante, Luciana deu outra conotação para tudo que tinha acontecido. Apesar da minha opinião inicial de que ele tinha dito tudo aquilo movido por um sentimento de amizade não ter mudado, a nova versão de Luciana, com o passar do tempo foi fazendo reacender a paixão que até então estava adormecida, congelada.

No dia seguinte voltei a procurar Fernando com a freqüência de antes. Uns dias ele estava meio esquisito, outros ele era uma pessoa maravilhosa. Mas eu gostava dele do jeito que era. Nessa fase eu percebi que meu sentimento por Fernando era algo bastante forte. Embora meus poucos amigos não acreditassem muito, devido a essa certeza, resolvi lutar, mas lutar do jeito que sabia, sem ser incisivo demais, somente marcando a minha presença e mostrando a pessoa maravilhosa que poderia ser para ele. E foi o que fiz até o dia em que tive uma conversa que mudou o rumo das coisas.

- Fiquei sabendo que você agora é amiguinho da Débora. - Disse isso a Fernando, brincando, uma vez que no decorrer daquele período conheci todas as pessoas que trabalhavam com ele e essa Débora era alguém insuportável.

- Que isso! A gente só conversa um pouco. Quem é fã da Débora é o Barbosa. Também aquele ali é um babaca. Dá em cima de tudo quanto é mulher. Vestiu saia, é com ele mesmo. Se bobear ele dá em cima até de você. - Esse Barbosa é um perfeito idiota, um boçal. Imagina como me senti ao ouvir do homem por quem estava apaixonado, que um imbecil qualquer poderia ATÉ se interessar por mim. Deixei o assunto morrer e saí. Sempre que Fernando me ofendia com essas observações a minha primeira reação era sempre de perdoar, pois ele não era obrigado a me enxergar como gostaria. Mas por outro lado ele me conhecia e sabia que eu não me sentia exatamente um homem e que certos comentários poderiam me magoar. Afinal, eu merecia ser respeitado assim como o respeitava.

Às vezes, as pessoas acham que sou sensível demais, mas é que elas esperam reações masculinas, como se eu pensasse como um homem. Mas não penso, nem reajo como tal. Admito que fica um tanto difícil de se relacionar comigo neste sentido, pois uma simples frase que passaria despercebida para qualquer outro homem, quando é dita a mim, magoa-me como uma terrível ofensa. Talvez se as pessoas pudessem me ver como realmente sou... Bobagem... Isso é impossível...

Era sábado e estava me sentindo a última das criaturas devido à observação de Fernando, no dia anterior. Coloquei um CD da Marina para tocar e chorei, chorei muito, pois percebi que estava sofrendo tudo de novo. Tinha voltado ao ponto de partida. Continuava apaixonado por Fernando e ele nada... É certo que agora era diferente ele parecia que me considerava um amigo... Mas até que ponto? Valeria a pena voltar a sofrer em nome de uma amizade que nem tinha certeza se era forte? Peguei uma caneta e um papel e escrevi dois poemas, um deles considero o mais lindo de todos que já criei, o nome que dei foi Alteza. Mas aquilo não me consolava. Estava sentindo um buraco no peito. Era o meu companheiro de jornada, o vazio...

Segunda-feira, começava mais uma semana e eu me sentia um trapo. Resolvi que não iria comentar nada com Fernando, mas também não queria voltar àquele relacionamento que me trazia prazer a custa de tanta dor.

- Oi, Jeremias! Como é que foi de final de semana? - Disse, Fernando, ao me encontrar na porta do elevador.

- Oi, Fernando! Fui bem. E você? - Respondi educadamente.

- Vamos ali no Pêpe, bater um papo?

- To atrasado. Cheio de serviço. Fica pra próxima. - Tentei ser o mais natural possível.

- Tudo bem! - Ele nunca insistia.

Sempre que nos encontrávamos eu dava uma desculpa gentil e me afastava. Então Fernando começou a me procurar indiretamente, se é que isso existe, pois ele sempre inventava um motivo qualquer para me ligar ou para ir até a sala onde eu trabalhava. Nunca dizia que era porque queria simplesmente conversar ou porque sentia a minha falta. No entanto, eu fui levando essa situação de uma forma até bem confortável, pois já estava me sentindo meio desligado dele. Até que numa noite ele ligou para a minha casa.

- Jeremias? Tudo bem? É Fernando.

- Oi, Fernando! Que surpresa!

- Eu acabei de passar um conto para o computador e queria muito saber a sua opinião sobre ele.

- Mas como? Pelo telefone?

- É. Porque não? Sou um excelente orador. - Brincou

- Diga lá então.

- Começa assim: Eu tinha quatorze anos quando... - Fiquei quieto, escutando ele ler o conto até o fim.

- É lindo, Fernando! Ele é profundo e retrata bem o amadurecimento de um homem. A-DO-REI!

- Você tá falando sério? Gostou mesmo?

- Gostei! Não to falando isso pra te agradar, não! - E não estava mesmo. O conto era lindo. Ele tinha valor como escritor e isso me fez admirá-lo. Esqueci todas as mágoas e voltei a procurá-lo.

Era um eterno vai-e-vem. Continuava apaixonado por Fernando e voltamos a nos encontrar no lugar de sempre, o boteco do Pêpe. Mas sentia-me receoso, era como se a qualquer momento Fernando fosse me falar uma coisa, ou agir de uma forma que me magoaria. Estava confuso. Resolvi me abrir com Luciana...

- Oi, Luciana! Tudo bem? - Disse ao aparecer de surpresa no apartamento dela.

- Que milagre é esse? Você aqui no meu apê.

- É que eu tou precisando conversar com alguém.

- Tá legal! Entra aí.

- É o Fernando...

- Que foi?

- Você tinha me dito que achava que o Fernando gostava de mim, mas tem acontecido umas coisas que têm me deixado confuso. Uma vez nós estávamos conversando e... - Contei sobre a conversa em que Fernando fez a observação que me aborreceu e também sobre o telefonema em que ele leu o conto.

- Essa tua relação com o Fernando talvez nunca se defina porque é muito difícil para ele aceitar que gosta de você.

- Não sei, não... Ele não nunca deixou transparecer qualquer coisa que me fizesse acreditar que tivesse apaixonado por mim. Eu acho que sempre foi amizade. - No fundo meu lado racional nunca acreditou nessa teoria de Luciana de que ele estaria apaixonado por mim. Mas o meu lado emocional ansiava que isso se tornasse realidade.

- Mas então por que ele iria dizer pra você que você era especial pra ele?

- Foi só um elogio...

- Além do que, Jeremias, talvez você se ofenda com o que eu vou dizer, mas na verdade isso que você sente pelo Fernando não é amor. Pra mim isso é mais um sentimento de gratidão. - Eu não estava procurando nomear o que eu sentia. Apenas sentia e era intenso. Não me aborreci com a declaração de Luciana, pois já estava acostumado com essa frase. Já tinha ouvido a mesma coisa em outras situações semelhantes. A impressão que tenho é que ninguém acredita no amor de um homem por outro homem. Quando dois homens se amam, a relação tem pouco apoio da sociedade. Quando um só ama, ele tem que superar. Afinal de contas, para a sociedade isso não está certo. Certo para as pessoas é o homossexual viver em total abstinência de amor e sexo, fazer um voto de castidade. Mas não acredito que foram esses os motivos que levaram Luciana a falar isso pra mim.

- Seja lá qual for o nome desse sentimento, ele existe e é forte...

No dia seguinte, na saída do trabalho encontrei Fernando. Não tinha ido a faculdade e estava saindo mais tarde.

- Oi Jeremias! Tá de saída?

- To.

- Vai pro ponto de ônibus?

- Vou.

- Então vamos juntos.

A Avenida Presidente Vargas estava engarrafada e enquanto esperávamos o ônibus Fernando puxou um assunto.

- Quer dizer que você se amarrou no meu conto? - Perguntou Fernando.

- É. Achei o maior barato!

- Sabe Jeremias eu nunca tinha mostrado aquele conto pra ninguém. Você foi a primeira pessoa. Pra falar a verdade você é meu único amigo... quer dizer... mais próximo. Tenho outros, mas você no momento é o único. - Ele sempre me surpreendia nos momentos mais inesperados.

- Puxa Fernando, você não sabe o quanto é bom ouvir isso de você.

- E por falar em bom. Como é que andam os poemas? - Sempre que a conversa tomava um rumo mais sério ele brincava.

- Tenho uns aqui comigo. Pera aí! - Procurei dentro da mochila e mostrei todos os que eu tinha escrito ultimamente.

- Posso ler aqui mesmo?

- Pode. Esse ônibus não vem mesmo. - Fernando os leu ali mesmo.

- São lindos, Jeremias! Especialmente esse aqui chamado Alteza. - Seria uma ironia do destino ou ele teria percebido?

- Engraçado! Esse também foi a que mais gostei.

- Ele é profundo. Nele você consegue captar bem o sentimento feminino.

- Mas, afinal de contas, eu sou uma mulher! - Brinquei e percebi que ele ficou encabulado.

- Todos são muito bonitos.

- Eles têm um mesmo fundo, um mesmo motivo. - Foi ingenuidade minha, mas não pensei que Fernando fosse me perguntar o motivo.

- Qual é esse motivo? - Por um instante não soube o que fazer ou dizer.

- Deixa pra lá...

- Quando você fala assim tem um velho conhecido meu, metido nessa história. - Não foi difícil presumir que ele era o motivo.

- Não toco nesse assunto porque parece que ele te aborrece?

- Mas você tinha me dito que havia superado isso?

- Foi. Na época eu acreditava no que estava falando. Só que depois... Mas o tempo vai resolver isso.

- É verdade. - Sempre que nós tocávamos nesse assunto pairava um clima de constrangimento. Como se fosse algo que não devêssemos conversar.

No dia seguinte, a noite, ao chegar em casa o telefone tocou.

- Jeremias? Tudo bem? É Fernando.

- Oi, Fernando! Tudo bem?

- Tá chegando da faculdade?

- Não, to chegando da casa de uma amiga. Fui bater um papo pra espantar a solidão. Por falar nisso você se considera uma pessoa solitária?

- Já me senti mais só do que hoje.

- Por quê?

- Conheci uma pessoa.

- E você nem me contou nada, hein?!

- To contando agora!

- Como é que ela é?

- Ela é uma mulher incrível. É a pessoa que eu sonhei.

- Como é que é o nome dela?

- Esperidiana. - O que me movia era um misto de curiosidade e masoquismo.

- Ela é de onde?

- Lá da faculdade.

- Quantos anos ela têm?

- Pera aí! Isso é um interrogatório? - Brincou.

- Não. É só curiosidade.

- Pois é, você pensa que só você pode ter relacionamentos complicados e discriminados? Eu agora arranjei um. Ela tem quarenta e cinco anos. - Fernando tinha vinte e três anos.

- E daí? Isso não quer dizer nada.

- É, mas a minha família não ia gostar muito dessa história.

Desliguei o telefone certo de que eu era um perfeito idiota. Sofrendo pelo amor de um homem que nunca me deu bola e ainda tinha outra.

Dois dias depois Fernando entrou de férias no trabalho. Estávamos em novembro. Foi um mês de muita saudade, muito trabalho na firma e muita preocupação com a faculdade, pois era época de provas. Eu detestava aquela faculdade, mas não suportaria tirar notas baixas. Estudei bastante. Mas não obtive o êxito que esperava.

* * *

Era dezembro, época de ver as notas. Resolvi ir a faculdade na parte da tarde. Quando estava comprovando as péssimas notas obtidas nas provas, Fernando aparece.

- E aí, meu camarada? - Disse, batendo em minhas costas. Fazia um mês que eu não o via, apenas falei com ele uma vez pelo telefone. A minha primeira reação foi de muita alegria.

- Oi, Fernando! Quanto tempo, hein! Tava aqui vendo minhas notas. Sabe que eu me dei mal, tirei...

- Depois a gente se fala lá no trabalho. - Ele cortou o que eu estava falando como se não pudesse conversar comigo naquela hora. Fiquei meio sem graça. - Esperidiana a gente podia... - Voltou-se para conversar com uma dona que estava ao meu lado e me deixou ali sem saber o que fazer. Na hora logo percebi, quando ele a chamou, que se tratava da tal mulher por quem estava apaixonado. Não me aborreceu o fato de ele estar com ela ali na minha frente, afinal nunca tive nada com ele e era de se esperar que um dia o visse com alguma mulher. O que me chocou mesmo foi o fato dele se desvencilhar de mim como se eu fosse alguma ameaça.

Continuei vendo as minhas notas e depois passei para o outro mural onde estavam as datas das próximas provas. De repente vejo Fernando ao meu lado.

- Amanhã eu passo lá na sua sala. Quero conversar um negócio contigo. - Falou isso baixinho, como se ninguém pudesse ouvir ele marcando alguma coisa comigo. Naquele momento minha reação foi de raiva. Olhei para ele e para ela, que estava sentada um pouco distante, com desprezo. Eu não merecia ser tratado assim.

- Tá legal.

Mal me despedi de Fernando, que sentado ao lado de Esperidiana conversava animadamente. Desci as escadas da faculdade como se uma nuvem negra de raiva pairasse em minha mente. Andei um tempo sem destino e depois resolvi ir para o trabalho.

Depois pensando com a cabeça fria cheguei a conclusão que talvez eu estivesse idealizando demais o Fernando. Ele é uma pessoa muito bacana, mais no fundo está ligado a todos os padrões da nossa sociedade, como qualquer rapaz de sua idade. Alguma vezes, antes do ocorrido na faculdade, tinha percebido ele estranho comigo na presença de outras pessoas. Mas essa vez na faculdade ficou muito clara a barreira imensa de preconceito que existia entre nós dois...

Dois dias depois Fernando aparece na minha firma e me chama para tomar um café no Pêpe, o único espaço que ele se sentia a vontade comigo.

- E aí, Jeremias? To te achando meio pra baixo. - Disse ao sentarmos no bar.

- Olha, Fernando, fiquei muito chateado com a sua atitude lá na faculdade.

- Mas que atitude?! - Eu sabia que mesmo que eu tivesse razão, ou ele tivesse consciência, jamais admitiria.

- Você me deixou falando sozinho e foi conversar não sei o que com uma dona que estava lá. Depois ficou falando baixinho comigo como se tivesse que esconder alguma coisa.

- Não, Jeremias! Você sabe que eu te considero muito e não faria isso. Já te falei que não sou tão aberto como gostaria, mas nesse caso não foi nada disso. Será que você não tá vendo coisas? Se tivesse pintado algum lance nesse sentido eu falaria.

- Pode ser que eu esteja vendo coisas, mas na hora ficou tão claro... - Por muitas vezes me perguntei se não estava imaginando coisas onde não existiam. Se não era o meu próprio preconceito criando fantasmas. Afinal não sou uma pessoa tão bem resolvida em relação à homossexualidade.

Não fiquei aborrecido com Fernando. Depois com o passar dos dias até esqueci o ocorrido. Mas uma coisa ficou bem clara, ele não era o homem da minha vida. Não porque ele não prestasse como ser humano ou porque tivesse agido mal comigo. Muito pelo contrário, continuava a gostar dele e a admirá-lo. Acredito que eu tenha criado um sonho chamado Fernando e ficava eternamente querendo encaixar o Fernando real nesse sonho. Ele nunca iria olhar para mim como eu desejava. E não era diferente de qualquer outro homem hétero. Como a maioria dos brasileiros, é machista, e devido a isso nunca iria se entregar totalmente em nossa amizade. A única solução era desistir, sem ressentimentos, sem decisões drásticas, simplesmente me conscientizar que o único caminho que restava seria renunciar a esse sonho tolo que criei. Não iria me afastar de Fernando, pois o problema estava em mim. Acreditava que poderíamos continuar nos relacionando como sempre. Precisava apenas acabar com as expectativas que criava em relação a ele. Essas, sim, precisavam desaparecer...

Preciso encontrar referenciais em mim mesmo. Conscientizar-me de que o vazio que sinto deve ser preenchido com um novo Jeremias. Mais forte. Mais seguro. Deixar de procurar suprir minha carência com situações imaginárias e/ou pessoas idealizadas. Procurar me amar como mereço... Como fazer essa transformação acontecer? Era um mistério pra mim...

***

Era fim de ano. Adriana estava eufórica, pois festa era o que mais gostava.

- Alô, Jeremias?! - Era ela ao telefone.

- Oi, Adriana! Quanto tempo!

- Pois é! Olha vou ser rápida. O que você vai fazer no Ano Novo?

- Não sei, ainda não tenho nada programado.

- Então você vai passar lá em Copacabana na casa da minha prima. Ela vai reunir um pessoal lá e eu pensei em você. Vai ser animado. - Essa era minha boa amiga Adriana, sempre determinando tudo.

- Tá legal! To precisando mesmo me divertir.

Quando chegamos ao apartamento da prima de Adriana, ela se perdeu na festa e eu fiquei sozinho sem conhecer ninguém. Resolvi ir até a varanda, pois tinha uma bela vista do movimento das ruas. De repente alguém puxa assunto comigo.

- Oi? Tá perdido aí. - Disse um rapaz ao se aproximar.

- To aqui vendo a euforia do pessoal.

- Gosta de Ano Novo?

- Gosto. É uma festa alegre e a alegria acaba contagiando a gente.

- Eu reparei quando você chegou. - Olhei para ele e seu olhar pareceu íntimo.

- É mesmo? Qual o seu nome?

- Pedro. E o seu?

- Jeremias. Você é parente de alguém aqui?

- Sou amigo de Verônica.

- Verônica?

- É. A dona do apartamento.

- Sabe o que é? Quem me trouxe foi a prima dela, Adriana, por isso eu não me lembrei do nome dela.

- Não esquenta, não! Você veio sozinho?

- Não. Vim com Adriana.

- Eu sei. Eu quero dizer alguém... entende...

- Entendi...Não... Nesse sentido eu to sozinho faz tempo. E você tá com alguém?

- Tinha uma pessoa aí na parada, mas a gente terminou, faz um mês.

Nesse momento Adriana chega e me arrasta.

- Jeremias, vem cá que eu quero te apresentar minhas primas!

Depois de ser apresentado as primas de Adriana, procurei levá-la para um canto , pois Pedro não saia da minha cabeça.

- Adriana, Você tem que descobrir alguma coisa sobre aquele cara que eu tava conversando.

- Ah! Não acredito! Mesmo?!

- Eu acho que ele tá me dando mole. Procura saber com a Verônica quem é ele. - Rodei um pouco pela festa e de longe Pedro me olhava. Eu fingia que não percebia. Depois de alguns minutos Adriana volta.

- Acho que hoje é o teu dia de sorte! Ele joga no teu time. Verônica me disse que ele terminou um caso com um cara chamado Rai. Vai fundo!

- Deixa comigo! - Ele era um rapaz alto, cabelos e olhos claros. Não era bonito nem feio, mas tinha um charme!... E umas pernas!... Voltei para a varanda.

- Desculpa ter deixado você falando sozinho, mas é que quando Adriana quer uma coisa... - Disse para Pedro.

- Não tem problema. A gente tem a noite toda... - Disse maliciosamente.

Começamos a beber champanhe e ficamos meio tontos. Foi surgindo um clima de sedução entre nós. Começamos a falar sobre nossos gostos e fiquei sabendo que ele adorava ler. Eu queria beijá-lo e sentia que ele também queria.

Era meia noite. Copacabana explodia em fogos. As pessoas se abraçavam e dançavam na rua. Dentro do apartamento todos já estavam meio bêbados e faziam uma algazarra. Pedro me levou para um canto atrás de uns vasos de plantas e disse:

- Feliz ano novo!

- Feliz ano novo!

Ele me abraçou. Eu tomei a iniciativa e nos beijamos... Foi maravilhoso... Já havia esquecido como era boa a sensação de ser correspondido...

2 comentários:

Pandora disse...

É impressionante como seu livro praticamente se ler sozinho Dama, de ontem para hoje avancei nos capitulo rapidamente!!! É uma leitura deliciosa, apesar das partes sofridas!

Comentando sobre o que já li até aqui a começar pela infância, sempre me impressiono como tudo o que nós consideramos estranho nas crianças gays é bem normal, me chocou a situação na escola e depois eu fiquei pensando o quanto nós professores somos despreparados em nossa formação para forma sujeitos que aceitam a diferença.

No mais é muito fácil ter empatia com o Jeremias, sentir com ele a dor de ser quem é e a falta de aceitação...

Texto ótimo!!!

Furlan disse...

Ufffaaaa, até que enfim um momento de prazer!
É muito sofrimento junto...
Eu não lembrava bem deste capítulo aqui.

Beijos!