domingo, 15 de julho de 2007

2º Capítulo - Parte II

Na saída do colégio fui surpreendido pela presença da minha mãe, que, por acaso, passou para me pegar. Parece que foi Deus quem a mandou, pois Téo me esperava do outro lado da rua cercado por seus três "capangas". Não sei o que ele seria capaz de fazer. Seu rosto aparentava raiva e um enorme hematoma.

No dia seguinte acordei apreensivo. Não sabia brigar como os outros garotos... Não suportava violência... Como faria para me livrar de Téo?... Não poderia contar nada em casa, pois a opinião de todos seria a de que eu o enfrentasse. Eu me sentia uma mulher... Por que uma "mulher" tinha que ficar se atracando com os homens?... Eu queria que eles gostassem de mim...

Tinha chegado a hora de ir para a aula e não havia outra alternativa. Precisava enfrentar Téo, como homem. No caminho para o colégio busquei de todas as formas meu lado masculino que deveria existir em algum lugar dentro de mim e fui me preparando.

Assim que cheguei, Téo me aguardava com seu três inseparáveis "capangas".

- Me bate agora, seu viado! Bate! - Avançou para cima de mim.

- Qualé cara! - Empurrei-o. Imediatamente os outros o seguraram. Eles eram
influenciados por Téo, mas no fundo percebiam a injustiça.

- Deixa isso pra lá, cara! Deixa esse viado ir embora. - Falou um deles para Téo. Deus me ajudou novamente, pois Téo deixou que eu entrasse no colégio e de certa forma, a partir daquele dia, passou a me ignorar...

Meados do mês de junho meu pai reuniu a família para comunicar uma mudança.

- Eu reuni vocês pra dizer que não vou continuar com o armazém. Essa minha tentativa não deu certo... Eu já tava quase falindo, quando resolvi fazer um concurso público para o TRE e passei... Vou trabalhar no centro da cidade e por isso vamos ter que voltar para o nosso apartamento no Grajaú... Vai melhorar nossa situação... Vocês vão ver. - Escutamos e não falamos nada. Não tinha nada a ser dito. Era só acatar a decisão dele.


No mês de julho, retornamos para nosso apartamento.

Eu via aquela mudança como algo positivo. Campo Grande não me dizia mais nada. Talvez os moradores do Grajaú tivessem cabeças mais abertas, e aceitassem melhor pessoas diferentes como eu. Fui satisfeito e não olhei para trás...

No entanto, com o tempo, percebi que o preconceito, em maior o menor grau, estava presente em todos os lugares. As crianças com que brinquei na infância haviam crescido, como eu. Não me reconheciam...

Passei a freqüentar a praça, que na infância era palco das nossas brincadeiras, para tentar uma reaproximação com o pessoal. O clima leve de outrora havia ficado no passado. Os garotos ficavam de um lado e não me davam chance, as meninas do outro, ignoravam-me. É estranho como os adolescentes dividem radicalmente o masculino do feminino, sem possibilidade de nuances. Em um determinado momento todos se reuniam e pouco a pouco iam se formando os pares. E eu?... Qual era o meu lado?... Onde estava o meu par?... Voltava para casa deprimido... Tinha vontade de morrer.

Para completar minha infelicidade, com o passar do tempo meu pai foi percebendo mais claramente meu homossexualismo e começou uma batalha cruel para me modificar. Mandava minha mãe revistar todos os meus guardados em busca de provas e ao mesmo tempo vigiava todos os meus passos.

- Jeremias! Isso é modo de se sentar! Homem senta de perna aberta! Assim oh! - E me mostrava como eu deveria me sentar.

Todos os meus gestos eram recriminados. A forma como eu segurava o copo ou como me levantava de uma poltrona, merecia uma observação grosseira. Minha mãe, mesmo que não concordasse, aceitava o procedimento dele. Passei a me comportar de maneira artificial. Procurava perceber como os outros homens andavam e gesticulavam e fiz um esforço absurdo para incorporá-los a mim.

Ele me surrava por qualquer desconfiança a respeito de homossexualidade.


Acredito que o preconceito contra o homossexual seja muito parecido com preconceito contra os negros, considerando a diferença das circunstâncias. Ambos sofrem por algo que não escolheram. Embora muitos achem que alguém seria suficientemente estúpido para escolher a homossexualidade da mesma maneira como se escolhe uma carreira na faculdade. O negro e o gay são rotulados como marginais. Os dois têm que "matar um leão por dia" para mostrar que existe um ser humano por trás da negritude ou da homossexualidade. Mas o aspecto da rejeição em família é único no caso do homossexual. Contudo, creio que o gay negro seja um sofredor maior, pois carrega os dois fardos sociais.

Lamento profundamente que um negro tenha preconceito contra um homossexual e vice-versa. Pois isso mostra o quanto o ser humano é incapaz de se colocar no lugar do outro, até mesmo quando seus dramas são semelhantes.


O período da minha adolescência foi marcado por muitas situações deprimentes. Especialmente, dentro da minha casa. De todas, as três que passo a narrar, traumatizaram-me mais:

Certa manhã acordei e minha mãe me esperava na sala.

- Jeremias, senta aí! - Sentei-me na poltrona em frente a ela - Seu pai ontem chegou bêbado e passou mal. Ficou com a boca roxa... Só vendo... Isso tudo por causa de você!... Você tem que se decidir!... Você quer ser homem ou quer vestir um vestido e sair por aí dando show pela rua?! - Eu nem sabia que fato tinha desencadeado tudo aquilo.

- Mas o que foi que eu fiz?!

-Tudo, Jeremias! É o teu jeito, tua voz, tudo! - Não tinha nada a falar, nem a fazer. Abaixei a cabeça. Senti-me como se tivesse cometido um crime. - Vou te pedir uma coisa, Jeremias. Quero que você saia. Vá pra rua e só volte pra casa depois que teu pai acordar e sair pro trabalho.

Acatei a ordem de minha mãe. Vesti uma roupa qualquer e saí sem destino. Andei durante muito tempo até que encontrei uma igreja aberta. Não era muito religioso, mas naquele momento sentia-me tão culpado, tão mal comigo mesmo, que entrei e orei pedindo ajuda a Deus. Não conseguia chorar...


Eu costumava escrever meus pensamentos num caderno, que considerava como um diário e o guardava embaixo do armário dentro de uma caixa de sapato. Como era hábito da minha mãe vasculhar minhas coisas, achei que aquele lugar era seguro.

Continuei estudando no colégio de Campo Grande, pois minha mãe não conseguiu transferência no meio do ano. Devido a isso, precisava pegar quatro ônibus para ir e voltar. Em um desses ônibus, sempre entrava um fiscal que eu achava lindo. Ele era bem mais velho, mas como todo adolescente eu tinha minhas fantasias. Sentia-me apaixonado por ele e escrevia tudo isso no diário.

Um dia minha mãe descobriu esse diário e mostrou para o meu pai. Na manhã seguinte, a primeira coisa que fez foi me procurar...

2 comentários:

Raphael Martins disse...

Eu pensaria em vingança conrtra o que seus pais fizeram. Não sei esconder rancor.

Furlan disse...

É tão profunda a tristeza que sinto a cada capítulo, que nem saberia expressá-la em palavras.
Eu sofri muito na infância também, por ser diferente. Não negro, não homossexual, mas ... diferente.
Enoja-me o fato de o ser-humano (ou desumano?) olhar para o outro e achar que a 'personalidade' tem que ser o que o aspecto físico indica.
Não vou conseguir explicar, mas depois eu desenvolvo. Parece que me vejo, em vários capítulos. E vou me lembrando do que já li (de você mesma) - só continuo sem lembrar onde nem como.
Beijos